segunda-feira, 24 de julho de 2017

Ragnarök, ou uma espécie de apocalipse peludo


Lembro-me que estava a chover muito nesse dia. Colocaram-me numa mantinha e levaram-me para fora, para as escadas de um prédio, e deixaram-me lá sozinho, ao frio e à chuva, apenas com uma pequena taça com comida e outra com leite. Não comi. Passei a noite cheio de frio, de fome. De medo. Chamei e chamei, mas ninguém voltou para me vir buscar. Acabei por encontrar um local mais quente, longe da manta onde me deixaram, entalado no exaustor de uma loja duas portas ao lado.
No dia seguinte de manhã, um rapaz apanhou-me e levou-me para dentro da loja. Na altura não o consegui ver muito bem, porque tinha os olhos colados com as remelas e o líquido estranho que me escorria dos olhos. Colocou-me numa caixa de papelão e tentou acalmar-me, mas estava com tanto frio e medo... O rapaz e as outras pessoas da loja perguntavam aos clientes se queriam um gatinho, mas todas responderam que não queriam ou não podiam. Uma sugeriu que me voltassem a colocar na rua, mas o rapaz que me recolheu ficou muito zangado e disse que não. Passado algum tempo ele levou-me para um novo lugar, para uma casa.  Colocou-me no wc com um cobertor fofinho, comida e leite próprio para gatos, mas eu não comi. Depois ele teve que sair e voltei a ficar sozinho. Continuava com muito medo.
Passado algum tempo, apareceu uma rapariga. Também não a conseguia ver muito bem. Tentei bufar-lhe, mas não tinha forças. Pegou-me e tentou dar-me banho, mas não queria sentir mais água. Fazia-me lembrar da chuva que me deixara gelado e com o nariz todo ranhoso. Ela desistiu do banho, mas percebeu finalmente que eu estava cheio de pulgas. Depois ela pegou num cotonete, molhou-o na água morna e, com calma, começou a limpar as remelas que tinham secado e quase fechado totalmente os meus olhos. Consegui vê-la pela primeira vez. Também devia ter um problema nos olhos, porque estavam cheios de água. Aconchegou-me junto dela, envolto na toalha com que me tentava secar o pêlo e fiquei, por uns segundos, a olhar realmente para ela. Percebi que não me ia fazer mal e fiquei agradecido. Encostei a minha cabeça ao peito dela e deixei-me, finalmente, dormir.
Algum tempo depois, o rapaz voltou. Estiveram os dois comigo algum tempo, a fazer-me festinhas e a tentar que eu comesse qualquer coisa. Adormeci. Quando acordei, estava tudo escuro e os humanos tinham desaparecido. Chamei e vieram logo a correr, aconchegaram-me e voltei ao sono. Quando acordei mais uma vez, chamei e lá estavam eles, novamente, ao meu lado.
No dia seguinte, o rapaz levou-me a uma senhora que tinha uma data de instrumentos que encostou em mim. Ele chamou-a de veterinária. Deu-me uma pica e fiquei ensonado, mas sei que isso matou as pulgas que tinha no pêlo. Nesse dia comi pouquinho, mas outra coisa me encheu que não foi comida: felicidade. Aqueles humanos tinham gostado de mim, por isso, decidiram que iriam ficar comigo e cuidar de mim. Chamaram-me Ragnarök. Às vezes é apenas Rag, mas eu gosto. Nessa noite miei quando me deixaram no sofá. Não que não fosse muito confortável, mas não queria ficar sozinho outra vez. A partir dessa noite, tenho dormido sempre com eles, umas vezes debaixo dos lençóis, outras em cima da coberta.
Agora sou um gatinho feliz, com peso saudável, brinco, pulo, roubo meias e faço muitas asneiras. A minha gripe está curada, graças à resiliência dos meus humanos que, durante semanas a fio, me limpavam os olhos e o nariz com soro fisiológico, me deram medicação e muito carinho. Não os trocava por nada. Gosto de comer, de ficar à janela, de atirar batons do cieiro ao chão, de atacar os rolos de papel higiénico e de brincar com a meia que os meus humanos arranjaram só para mim, para não destruir as deles. Gosto do miminho que me dão, de dormir no colo deles e de lhes morder ocasionalmente. Agora já não preciso de miar e chamar por mais ninguém, porque finalmente tenho o meu clã.


Se o bebé apocalíptico de quatro patas do Covil pudesse falar, seria mais ou menos assim que contaria a sua história. Se vos disser que me partiu o coração ver em que estado estava depois de ter sido deixado, na rua, ao frio e à chuva, por um monstro, é dizer pouco. A minha avó, pessoa mui sábia, dirá a qualquer um que "quem não gosta de animais, não pode gostar de pessoas". Não podia estar mais de acordo.

Dar-lhe um nome foi o passo decisivo. Se fosse uma menina, seria Leia, mas como é um menino, ficou Ragnarök, porque não há dúvidas que um gato é um apocalipse peludo a acontecer. Alguns dias depois do Rag estar no Covil e apesar de ter começado a interagir, cheguei a pensar o pior. Não comia quase nada e perdeu peso, quando já era estava praticamente pele e osso.

Felizmente, começou a melhorar. Pareceu um milagre. Começou a comer bem, a brincar e a saltar como um doido. Acho que ele sentiu que estava finalmente seguro e que podia confiar em nós. A gripe ainda persistiu algum tempo, mas passou. Foi um passo importante acolhê-lo, porque acarretou algumas responsabilidades, mas nos nossos destinos estavam entrelaçados. Hoje é o seu primeiro aniversário (ou aquele que  a veterinária estimou, visto que não sabemos realmente quando nasceu) e sua prenda foi uma lata de atum em água só para ele. A nossa prenda foi vê-lo saudável e feliz ^^



Em cima, a primeira foto do Rag quando foi apanhado da rua, muito doentinho. Depois, as primeiras fotos dele no Covil, já lavadinho e com os primeiros cuidados. Em baixo, já crescido e saudável ^^


3 comentários:

  1. Vê lá que até vim comentar! Fiquei de lágrimas nos olhos com o relato do Rag. Se há coisa que neste mundo eu não entendo é quem abandona animais. Enoja-me, enerva-me. Se tivesse um Death note, muito certamente me livraria de todas as pessoas que abandonam animais, ou os maltratam. E fico tão, mas tão magoada quando tento colocar-me "na pele" de um animal abandonado. Imaginar como será quererm pedir carinho e apenas receberem patadas. Argh. Eu também acho que é impossível quem não gosta de animais gostar de outros seres. Mas respeito quem não gosta, desde que não façam mal nenhum aos bichos. Também não gosto de centopeias e apanho-as para as colocar fora de casa. Simples.
    Por outro lado, adoro pessoas que decidem ficar com um animal que encontraram na rua. Os meus 3 bebés foram todos da rua: uma com 5 dias, o outro com 2 meses e a outra com 1. A primeira ficou logo decidido ficar connosco, os outros dois foram tratados mas com a ideia de serem adoptados depois... Já não foram a lado nenhum e amo-os de paixão.
    O Rag é lindo e tem uma sorte louca com os donos que tem. Espero que sejam sempre os 3 felizes e ele faça muitas traquinices ehehe Por isso, resta-me agradecer por seres uma boa pessoa e teres feito uma boa acção por este bichano. Já somos amigas!

    Beiinhos!
    PS.: White Raven :p

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  2. awwwwww que coisa mais linda :D fiquei assim cheia de saudades da minha Mikas...

    Beijinhos,
    O meu reino da noite ~ facebook ~ bloglovin'

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  3. Louvo muito a vossa atitude. Ajudaram o gatinho e ganharam um amigo para a vida. Os nossos animais são os maiores amigos que podemos ter. São tão leais e mostram-no todos os dias. São muito agradecidos pelo que fazemos por eles e nós também devemos agradecer as enormes alegrias que nos trazem.

    É muito bonito o Ragnarök. Valeu a pena toda a preocupação e os cuidados com ele porque está um gatão lindão e crescido. Aposto que é um reguila, pois tem todo o ar disso. Os gatos são hilariantes. Lembram-se de fazer cada disparate... Parabéns ao Senhor Ragnarök! E aos donos, claro. :)

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